Como se sente, agora que este formidável blogue foi encerrado?

27/02/08

Cimeira UE-Rússia, em Mafra

Estava um solinho ameno. O Convento resplandecia nos seus tons marmóreos. Alguns mafrenses, entre aposentados e comerciantes, miravam o aparato da Cimeira junto à Esplanada Real e à Pastelaria Convento. Entre eles e o edifício barroco estabelecera-se uma área de protecção policial duns bons cinquenta metros, plena de grades, fitas e barreiras, e polícias com fartura: apeados, de braços atrás das costas, o uniforme azul aprumadinho; de bicicleta, com uma cinta donde sobressaía o walkie talkie, trajados de pólo e calções azuis escuros; a cavalo, com o chapelito verde e o animal bem escovados, as crinas ondulantes, lustrosas; de mota, a passo de caracol, a percorrer um perímetro mais alargado, os capacetes bem esfregadinhos que podiam servir de espelho; mais tarde haveriam de chegar uns outros, com ar mais sério, roupas escuras e caras tapadas, armados até aos dentes e dissimulados no topo do Palácio e das casas do outro lado do Terreiro – coisa mais ao género de Hollywood. Enfim, um aparato e pêras, algo contrastante com a imperial calma que mesmo naquele dia dominava o sítio.
Os populares murmuravam pacatamente acerca do acontecimento. Presenças assíduas na praça, conheciam-se quase todos e tratavam-se com familiaridade. Na sua calma, porém, não escondiam uma certa indignação pelos modos como tudo aquilo decorria: “...e o meu filho, que hoje até tinha ponto na faculdade, nem sequer conseguiu lá chegar a tempo e horas, porque a auto-estrada estava fechada”, lamentava uma senhora de seus cinquenta anos, o cabelo impecavelmente penteado. “É prò russo poder andar à vontade”, respondeu-lhe um outro cinquentenário, encostado ao seu táxi Mercedes. Estavam ambos virados para a construção monumental, de braços cruzados ela, de mãos nos bolsos ele. “Eu, cá pra mim, se o homem tem tanto medo que lhe façam mal, é porque fez alguma”, aventou a senhora com um arquear das sobrancelhas. Uma terceira espectadora, num banco ali próximo, mesmo junto à estátua de D. João V – que estava enfeitada de flores para a ocasião, interrompeu-lhes a conversa, “Como é que se chama lá o estrangeiro?”, ao que os primeiros, em coro, lhe responderam “Pu-tín, Pu-tín”, acentuando com malícia e gozo a última sílaba do nome do presidente russo.
Finalmente, lá saíram as insignes sumidades. Saíram num tropel pelas arcadas gigantes da frontaria do monumento – apesar da esmerada sobriedade dos movimentos – com inúmeros seguranças à civil a rodearem-nos, com alguns jornalistas a metralharem as suas máquinas digitais uns degraus mais abaixo e a abanarem os microfones freneticamente, com um enxame de motas da Brigada a roncarem na estrada, prontas para abalarem a bater a estrada, com o corpo policial ali presente, uns metros mais à frente, a dar asas à curiosidade e a espreitar pelo canto do olho para, num repente, poderem vislumbrar as faces daqueles mediáticos senhores, protagonistas de tão badalado encontro, representantes de um mar de gente desde o soalheiro Cabo da Roca até ao inóspito Estreito de Bering, indigitados com os mais altos cargos da Europa e da Rússia, poderosos e sorridentes.
O alvoroço foi ainda maior quando, já com os senhores da Europa e da Rússia sentados nos carros, limusinas e carrinhas especialmente preparadas para o efeito, aquele batalhão mecânico largou duma só vez, a alta velocidade, num ensurdecedor ronco, pela estreita avenida da simpática vila, via Lisboa.
Num ápice, tudo acabou – as notabilidades abandonaram Mafra e o silêncio, que por breves momentos cedeu o lugar ao rumor das gentes e ao estrépito das comitivas mandantes, voltou.
Naquele instante em que os governantes desciam a escadaria e, sorrindo, acenavam aos locais que os observavam, desejei que um urro de contestação se erguesse gloriosamente das gargantas ali presentes; mas a indiferença foi quase total, só interrompida, aliás, por umas tímidas palmas de uns quantos imigrantes que ali assistiam à cena.
Hoje, enquanto tentava reavivar os acontecimentos daquele peculiar dia, apercebi-me que o que mais profundamente se cravou na minha mente foi o seguinte: Eles são mais importantes que Nós.
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[Sugestão musical: Jeff Buckley - Eternal life]
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«Cime[nte]ira I»
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«Cime[nte]ira II»

«Lado 1»

«Lado 2»


«Cim[ent]eira III»

«Olha aquela ali de top às riscas - bem boa, pá!
(traduzido do Russo)»

«O Sócrates anda sempre de gravata azul»

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